8/28/2012

O Afinador da Gávea

Love of Music - red rose-Desafinado, de novo!

-Ãhn?

-O piano, desafinado de novo! Mas não faz nem um mês que mandamos afinar!

-Ãhn?

-O piano! Você não acabou de pedir pra eu tocar pra você? – reclamou o marido, sem paciência com a mulher.

-Uê, você não vai tocar?

-Como, se ele está desafinado? Chama aquele afinador outra vez.

-Quem?

-O afinador, Marta! Chama ele de novo! Não dá pra eu tocar o piano pra você todo fim de semana se ele não estiver afinado! Na verdade eu acho que tenho que comprar um novo, todo mês ele desafina agora.

-Pode deixar, amor, vou ligar pra ele amanhã cedo!

Calça jeans surrada - de muitos anos, ele nem sabe quando foi que comprou, nem mesmo se o buraco na perna era desses modelos pra frente (quem ainda fala pra frente?) ou se era de velha mesmo -, camisa aberta até a metade do peito por desleixo, escapulário com nossa senhora de um lado e as fotos do pai e da mãe do outro e os sapatos amarfanhados (eram espadriles, mas quem sabe isso esses dias?), chave de afinador, farrapo de flanela, alicate, diapasão, isolador de cordas, uma ou outra tecla reserva – arranhadas –, e um cigarro no canto da boca.

-Pronto.

Piano tinindo de afinado, dona da casa arfando.

-Sara, o piano, desafinou de novo! As crianças estão brincando com ele? Chama o afinador!

-Elizabeth, fala com a empregada pra tomar cuidado com o piano! Chama o afinador!

-Jéssica, já chamou o afinador?

-Ana Clara, por quê o afinador não veio hoje, será que ele anda muito ocupado?

Olavo, Bruno, Sérgio, Marcelo, Augusto e todos os outros maridos não tinham ideia do nome ou do número, só o conheciam como o afinador.

8/06/2012

anagrama do escritor carente

eu? lê eu? lê?

O meu 禅空 - II

zen2[17]Uma grande professora pediu que lêssemos “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen” (Herrigel, Eugen), Conhecendo ela do jeito que a conheci sei que ela tentava mudar nossas vidas. Por meio dela também me apaixonei por Salinger. Ela chegou a passar uma entrevista com a última mulher do demi-deus (mas isso é outro momento).

 

Há uma passagem muito interessante no livro: durante o treino com flecha, o aprendiz descobre uma maneira de acertar o alvo na maioria das vezes – realmente foram poucos erros durante uma longa sessão. Ficou surpreso quando o Mestre pediu que ele se retirasse da academia e nunca mais voltasse. De acordo com o mestre, ele estava tomando o caminho mais curto, quando ele deveria SER o caminho.

Em nossa existência diária procuramos sempre ser a flecha, buscando alvos a esmo, quando não a esmo, indicados por falácias que queremos acreditar ser verdade: projetamos a namorada perfeita, o emprego ideal, o salário maior. Se buscarmos SER o alvo, qualquer das metas que atinjamos será a meta desejada, pois nos reencontraremos em um círculo, nunca deixaremos de SER.

Diz que ocidental pensa muito na vida, tenta racionalizar cada ação. Diz. Diz também que não se pode descrever física quântica usando mandarim. Bem, isso é verdade. Também me contaram que francês é o idioma oficial de muitas organizações internacionais pelo simples fato de que não há controvérsia, interpretação e duplo-sentido, a língua é franca. Outra coisa interessante é que deficientes auditivos –surdos- não têm noção do que significa uma pergunta, a estrutura não pode ser representada pela linguagem de sinais. Para inquirir alguma coisa é preciso criar uma situação, uma historinha, e deixar que eles completem com a informação desejada.

Tanto rodeio só para falar uma coisa: nosso cérebro e nossa linguagem possuem forças e fraquezas incompreensíveis e não descritíveis com palavras específicas, o que pode parecer um paradoxo. Tão forte é o poder da mente que um mero clichê pode fazer cair por terra qualquer credibilidade. O uso das palavras corretas pode mudar sua vida por completo.

E a palavra que sugiro é VAZIO, esqueça suas metas pelo simples motivo de que você é a meta, sempre. Deixe a vida seguir seu fluxo, deixe que “os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer”  (chico science). Não significa largar de mão. O caminho é conhecimento, e só se tem conhecimento quando se interioriza o conhecimento, caso contrário o que se tem é uma frágil memória que se esvanecerá como a fumaça de um incenso. A chama deve ser alimentada diariamente, como o sol clareia a senda.

8/03/2012

Coloque aqui o título que achar mais conveniente.

-Conseguimos.

-Conseguimos?

-Conseguimos.

-Ótimo! Quantos faltam?

-Cervantes está quase acabado.

-Não tivemos problemas por ele ser estrangeiro?

-Pelo contrário, foi mais fácil até, adulteramos todas as traduções.

-Machado de Assis?

-Um grupo de feministas nos ajudou com ele. Capitu denegrindo a imagem da mulher estava há tempos atravessada na garganta delas.

-Onde mais podemos contar com o apoio delas?

-Elas prometeram Nelson Rodrigues e Jorge Amado também. Elas ficaram bem colaborativas depois que proibimos a Simone de Bevouir.

-E a queer literature?

-Tem um grupo glbt nessa com a gente.

-Glbt?

-Sim, sim. Eles acham que Caio Fernando Abreu é muito cafona, então trocaram apoio pela cabeça dele.

-Nossa, que maravilha! Ainda temos o apoio dos ncn’s?

-Claro! Eles nunca esqueceram o que fizemos por eles no Monteiro Lobato.

-Algum grupo homofóbico está nos ajudando?

-O apoio tá difícil. Toda vez que nos reunimos com o pessoal feminista, eles partem pro ataque um do outro…

-Briga?

-Antes fosse, mas essa animosidade é só nos holofotes. Eles partem é pra baixaria, com o perdão da palavra…

-Não precisa se desculpar, essa nossa formalidade é só pras câmeras também.

-Sim, senhor.

-E a censura?

-O pessoal da imprensa tá bem colaborativo, como o senhor disse.

-Ah! Não falei! Isso é bom pra eles, chama a atenção!

-Foi isso que eles disseram. Só ficaram triste com a caça as bruxas que fizemos com os comerciais de cerveja. A bebida é que paga o salário dos jornalistas.

-Mas tivemos que fazer isso. Na próxima vez lembrem a eles que em troca da Paris Hilton a gente convenceu a Sandy a fazer uma declaração polêmica!

-Verdade.

-Música?

-Desculpe, mas o senhor acha mesmo isso necessário?

-O que você quer dizer?

-A gente eliminou as bandas punks, compramos o Ultraje a Rigor, o Titãs e a Syang e quase todas as de rock nacional, mas por que não compramos as internacionais?

-Porque o povo não fala inglês, não faz diferença.

-Ah… E esses roquinhos babinha?

-Faz parte da campanha de alienação.

-Ok. Faremos alguma coisa com o funk?

-Não podemos, não agora. Temos que conservar o carnaval também. Panis et Circenses, não se esqueça. Mas podem fazer um ou outro movimento falando qualquer bobagem sobre apologia ao crime, sexo, drogas. Esse engodo sempre funciona.

-E a Tv?

-Não sabemos o que fazer ainda, afinal já atacamos os comerciais. Talvez continuar com a mesma sistemática do funk, o que você acha?

-Perfeito senhor! E política?

-Não se preocupe com isso. Todo mundo fala, mas ninguém lembra em quem votou. Nem debate eles assistem.

-Sim, senhor.

-Como anda o patrulhamento? O Mark tá ajudando?

-Sim! Creio que foi uma das melhores coisas que planejamos! Funciona mais que o Encontro Anual dos Intolerantes! Cada um dos ignorantes assume uma postura que formulamos e passam a fiscalizar uns aos outros!

-Uhn… Muito bom, mas temos que tomar cuidado com extremos! extremismo nunca é bom entre nós, deixe isso para os proletários.

-Sim sim! 1984 é uma obra prima!

-Pode ler nosso exemplar quando quiser, a igreja nos deu uma cópia.

-Mais alguma coisa senhor?

-Por hora é só. Muito obrigado,

-Às ordens.

8/02/2012

O Início do Diálogo

Não se notava nada, além de uma paisagem morta, muitos quilômetros ao redor. Mesmo com o intenso movimento, o que percebia-se eram autômatos a vagarem aleatoriamente. Cada uma dessas criaturas ruminava sua própria necessidade em fazer eles não sabiam bem o que, apenas o sentimento de cumprir algo e ser congratulado por isso.

Se ao acaso olhássemos atentamente veríamos um ser destoante, parado, admirando tal organizado caos que o circulava. Há muito desistira de pertencer à balburdia, não se ajustava. Não conversava, o que prejudicava ainda mais seu entendimento, mas simples observação parecia lhe bastar. Tinha a alma desprovida de ambições. Passava dias a fio sem nada fazer além de se arrastar por entre os autômatos. Esbarrava quando em qual em um ou outro, por acidente ou intenção provocativa, todavia esperando e pensando em reações. Lar. Quando refletira sobre isso pela última vez? Se imaginarmos pertencer, equilíbrio, compartilhamento, nunca tivera um. Encontrou a rua há muito tempo.

Um dia, distraído, tropeçou em uma pessoa que estava caminhado lentamente. De um jeito estranho, não conseguiu ver a pessoa como ela realmente se apresentava, não saberia descrever seus traços, suas roupas. A única coisa que saltava aos olhos era a velhice, mas de um jeito que nunca vira antes. Era uma velhice sábia, experiente, de quem viveu a aprender, sem outro propósito que não a própria vida. Impossível precisar quanto tempo ficara encarando o ente, mas tinha consciência de que o seguiria por muito tempo.