8/21/2010

ANÁLISE SOCIOLÓGICA NO DISCURSO DO RAP

Erica Souza Sodré Soares e Gustavo Cordeiro são estudantes de Pós-Graduação Latu Sensu em Estudos Literários pela Unianhanguera, ela graduada em Letras pela Universidade Bandeirante de São Paulo e ele em Comunicação Social pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a construção da linguagem existente no discurso das letras de rap, tendo como ponto de partida a análise sociológica do texto e seus sentidos produzidos enquanto linguagem cultural, caracterizado pela capacidade de reflexão crítica à ordem social, tendo que traz a tona problemas de um determinado grupo, apresentando resistência à criminalidade e tentando aproximar as pessoas da poesia existente em suas letras.

Diante disso, fica proposto reconstruir a ideia de que esse tipo de comunicação ligada à cultura de massa passa a ser um tipo de literatura que informa a partir da linguagem mais próxima do cotidiano da periferia.

Palavras-chave: Rap, Linguagem Cultural, Crime, Social, Poema-canção.

Abstract: This article aims to analyze the construction of the discourse of rap lyrics, starting where the text and its meanings are produced as a particular language, characterized by the capacity of critical reflection of the social order, and that brings up problems of a particular social group, and shows the refusing of getting in crime life and trying to make people realise the poetry behind its lyrics.

Therefore, it is proposed to rebuild the idea that this type of communication, classified as mass culture, becomes a kind of literature that reports the every day reality using their on way of speaking.

Key words: Rap, Particular Language, Crime Life, Social, Lyrics, Poetry.

Introdução

Originário da periferia das grandes cidades dos Estados Unidos o gênero musical - acróstico de rhythm and poetry para ‘rap’, ritmo que contagiou a juventude brasileira, é originário do hip-hop que designa um conjunto cultural vasto que deriva daí seus quatro elementos artísticos: MC, master of ceremony, mestre de cerimônia ou rapper, a pessoa que leva a mensagem poética-lírica à multidão, que acresce às técnicas do freestyling ou livre improviso, e o beat-box, que são sons reproduzidos pelas próprias cordas vocais dos rappers cuja característica de percussão guarda semelhança de efeito com um toca-discos ao acompanhar o MC; o DJ, disc-jóquei, aquele que coloca a música para dançar; o break, para aqueles que se expressam por meio de movimentos da dança; e o grafite, a arte visual.

A relação do hip-hop com a vida cotidiana dos jovens trás a tona ideologias marcadas pelo preconceito de pessoas ditas de classe social superior, como explica Rosana Martins:

participantes de uma cultura distinta da ordem dominante marcada por uma série de práticas integradas incluindo a dança, a música e arte visual com o objetivo de disponibilizar espaços para a interação e comunicação de grupos marginalizados, um fórum pelos quais pudessem rever o significado de ser jovem e negro. (p.2)

A construção poética do rap no Brasil tenta buscar e até mesmo denunciar problemas sociais de um país em desenvolvimento bem como, a pobreza, a violência urbana, a discriminação racial, o resgate da auto-estima dos afro-brasileiros, a desigualdade na distribuição da renda, o usos de drogas, a falência da rede educacional, as chacinas entre outros problemas.

Em sua maioria, todos esses problemas são vivenciados pelos moradores de periferia, e através dos poemas-canções do rap é possível perceber que se trata da realidade comum dessas pessoas, e que em geral os rappers defendem a conscientização social, não o crime. Tema esse que será objeto de analise desse artigo através da canção “To ouvindo alguém me chamar”, do grupo Racionais MC’s.

Tal análise partirá do princípio sociológico de que a literatura voltada para o discurso pode dizer muito sobre uma determinada sociedade:

a análise sociológica se volta para a área dos discursos e, dentro dela, aponta para a da literatura, frequentemente com o propósito de ilustrar, exemplificar ou comprovar uma interpretação de caráter bem mais abrangente: a interpretação de certa sociedade. (COSTA LIMA, 2002, p.661)

Ou seja, com um estudo mais de perto entre as relações da poesia presente nas letras de rap e as condições vividas pelos rappers, fica mais fácil conhecer um pouco sobre as pessoas desse meio.

O rap e o discurso

Em busca de atenção, compreendimento e consequentemente conscientização da população para um problema real, os compositores fazem uso de uma linguagem bem especifica (chamada, inclusive, de dialeto por eles mesmos). Um bom exemplo, o uso de gírias como marca da identidade e vista muitas vezes, por pessoas não pertencentes ao meio, como uma linguagem de marginais. Contudo, a escolha por esse tipo de linguagem faz com que o individuo sinta-se inserido a um grupo, pois esse tipo de fala expressa a vontade, interesse e pretensões de um coletivo. Também os deixa bem próximo de seu público alvo, jovens que, muitas vezes sem acesso a escolas, utilizam a fala para alcançar a cultura passada por gerações.

Segundo Antonio Candido (2000), nos países subdesenvolvidos a literatura erudita está fora do alcance das grandes massas devido ao processo de urbanização que traz consigo o domínio do rádio e da televisão fazendo com que os alfabetizados se desinteressem pela leitura. Por outro lado, o contato com a poesia feita pelos rappers chega a essas pessoas como uma estrutura única, assim, o interesse em desvendar seu significado abre portas para o estudo da literatura.

[...] Uma conversa no café pode transmitir informação, mas o que predomina nesse tipo de conversa é um forte elemento daquilo que os linguistas chamariam de “fático”, uma preocupação com o ato da comunicação em si mesmo. [...] estou assinalando também que considero digna de valor a conversa com você, que o considero uma pessoa com quem vale a pena conversar que não sou anti social. [...] (EAGLETON, 2003: 18)

[...] Não que tenhamos alguma coisa chamada conhecimento fatual que possa ser deformado por interesses e juízos particulares, embora isso seja perfeitamente possível; ocorre, porém, que sem interesses particulares não teríamos nenhum conhecimento, porque não veríamos qualquer utilidade em nos darmos ao trabalho de adquirir tal conhecimento. (Ibidem, p. 19)

O grupo Racionais MC’s é formado por Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay — os dois primeiros da zona sul e os dois últimos da zona norte da cidade de São Paulo. Desde o início da formação do grupo, na segunda metade da década de 1980, impressiona pelo conteúdo de suas músicas que retratam, através das letras, o cotidiano das pessoas que moram na periferia de São Paulo, discutindo crime, pobreza, preconceitos social e racial, drogas e consciência política, principalmente da zona sul da cidade. Segundo Mano Brown (apud TELLA, Marco Aurélio Paz):

Rap é o maior veículo de comunicação. Ele faz o que nenhum outro veículo faz: conta a verdade como ela é, e aponta soluções. É direcionado ao povo negro, apesar de muitos brancos ouvirem. Mas em sua essência é uma música negra, para negros. Diante do contexto político, é a nossa história, é a nossa segunda escola, porque a escola conta a história parcial e nós contamos a real.

A letra de “Tô ouvindo alguém me chamar” narra a trajetória de um jovem de periferia que se envolveu com o crime e foi assassinado. Durante a história, o autor mistura o presente (momento do assassinato) a memórias (sua entrada para a criminalidade), num processo complexo que exige muita atenção para ser desvendado e compreendido:

[...] apavorei, desempenho nota dez
dinheiro na mão, o cofre já tava aberto
o segurança tentou ser mais esperto
foi defender o patrimônio do playboy
não vai dar mais pra ser super-herói!

se o seguro vai cobrir
foda-se, e daí ?

o Guina não tinha dó:
se reagir, Bum!, vira pó

sinto a garganta ressecada
e a minha vida escorrer pela escada
mas se eu sair daqui eu vou mudar[...]

Junto a isso, a base (instrumental) conta com trechos de diálogos que remetem a personagens secundários, que fazem parte do dia-a-dia do herói lírico, como seus parceiros de crime ou seus executores.

No começo, a carreira no crime lhe pareceu uma boa alternativa à pobreza, não gostava da escola e a rua o atraía mais, ele conhece Guina, se torna seu professor do crime:

[...] mas sem essa de sermão, mano,

eu também quero ser assim
vida de ladrão não é tão ruim!
Pensei
entrei
no outro assalto eu colei e pronto
aí!

o Guina deu mó ponto[...]

Durante os primeiros períodos como criminoso ele afirma que está bem melhor que seu irmão, e o desdenha, por escolher uma vida que não o levará a lugar algum, os estudos:

[...] Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó[...]

E segue em seu ataque:

[...] fiz dezessete, tinha que sobreviver
agora eu era um homem, tinha que correr
no mundão você vale o que tem
eu não podia contar com ninguém
cuzão,
fica você com seu sonho de doutor!
quando acordar cê me avisa, morô?
eu e meu irmão era como óleo e água[...]

Jacob L. Lumier em seu artigo cita Georges Gurvitch, que classifica estas manifestações contrastantes como Gestalten (estruturas) sociais, reais ou virtuais (ideias), que ocorrem simultaneamente, as vezes se anulando, as vezes se equilibrando. Ainda de acordo com a citação de Lumier, Gurvitch classifica e enumera seus tipos e/ou ocorrências:

1) - uma mentalidade, em particular preferências e aversões afetivas; 2) - predisposições a condutas e reações;

3) - tendências a assumir papéis sociais determinados;

4) - um caráter coletivo;

5) - um quadro social em que: (a) - os símbolos sociais se manifestam, e (b) - escalas particulares de valores são aceitas ou rejeitadas.

(LUMIER)

No final, a mensagem se torna clara e direta, e o fundo moral surge, revelando que, o que parecia apologia se trata de alerta:

[...] meu irmão merece ser feliz
deve estar a essa altura
bem perto de fazer a formatura
acho que é direito, advocacia
acho que era isso que ele queria
sinceramente eu me sinto feliz
graças a Deus, não fez o que eu fiz
minha finada mãe, proteja o seu menino
o diabo agora guia o meu destino [...]

Conclusão

A mensagem do poema-canção, entretanto não teria a mesma força se estivesse fundada num discurso “externo”, ou seja, de quem não vive a realidade cruel da periferia dos centros urbanos brasileiros, mas chama atenção para problemas existentes como uma forma de protesto e a quem ela chegar se mostrará dessa forma. Autenticidade e legitimidade sustentam a poética forte veiculada pelas letras de rap.

Diante dessas observações, apressadamente poderíamos chegar à conclusão de que a linguagem do rap contribui para aumentar o abismo que separa os que têm dos que não têm acesso à cultura letrada. Contudo podemos enxergar de outra maneira, mesmo não seguindo a norma culta da língua, “desrespeitando” o que se espera do registro escrito na maioria das vezes, é assim que as pessoas da periferia se comunicam.

Podemos concluir que por meio da linguagem do rap e suas letras vistas como poemas, é possível perceber a intenção de mobilizar e conscientizar a juventude a lutar pelos seus direitos e não entrar no mundo do crime, além disso, tentam combater os abusos da dita burguesia, buscando diminuir a desigualdade social existente no país.

Referências

ANDRADE, Elaine Nunes de (Org.). Hip-hop: movimento negro juvenil. In: Rap e

Educação - Rap é Educação. São Paulo: Summus, 1999, p. 83-91.

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: Uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LIMA, Luiz Costa. A análise sociológica da literatura. In: Teoria da Literatura em suas fontes. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

LUMIER, Jacob J. A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre: Aspectos Críticos de um debate atual do Século Vinte, s/d Site: Open FSM. Disponível em: http://openfsm.net/people/jpgdn37/jpgdn37-home/A-Dialetica-Sociologica-_Sartre_Gurvitch.pdf Acesso em: 15/07/2010.

MARTINS, Rosana. Rap Nacional e as Práticas Discursivas Identitárias. Site: Associação Brasileira de Etnomusicologia, s/d. Disponível em: http://www.musicaecultura.ufba.br/Martins-Rap_nacional.pdf Acesso em: 14/08/2010.

TELLA, Marco Aurélio Paz. Reação ao estigma: O rap em São Paulo, s/d. Site: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Disponível em: http://www.ifcs.ufrj.br/~enfoques/marco06/pdfs/marcodoc06-02.pdf Acesso: 14/08/2010.

Um comentário:

  1. Gustavo, bacana essa análise feita sobre o rap mostra como funciona os dois lados da moeda, para quem está perdido no mundo seria uma boa ler essas escritas e refletir melhor e se suas atitudes condiz com sua vida pessoal perante sua família.
    Abraços.
    Mario.

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