7/24/2009

Bueiro

trechos do livro Bueiro

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Sempre que atravesso a rua vou costurando entre os carros, já que o trânsito nunca anda mesmo nessa rua horrível. Não tenho a menor vontade de ter carro, acho que nem vou ter quando estiver na idade de dirigir. Vou sentar no mesmo lugar de sempre, na escada que dá acesso a estação. Tem os mesmos de sempre andando de skate, outros sentados no ferro, conversando, fazendo bagunça, e um monte de menor de rua trocando idéia. Ouço um quilhão de “e ae Rato, firma?” conforme vou chegando. O maneiro é que a gente só brinca entre nós, nunca mexemos com quem está esperando ônibus. Bem, quase ninguém, porque não pode passar mulher que a gente mexe.

- Fala ae Ale, vai na festa da Cátia? – acho que ele nem vai.

- Pô Rato, nem vô, vou tocar hoje lá no Centro, tá afim de ir? – na boa, ele me convidou só pra ser educado e retribuir o convite.

- Nem, vou lá nessa festa mesmo, vai ter muita breja, e sempre rola um beque! – sei que ele não fuma, mas falei só pra enfatizar que não quero ir com ele e sei que ele não quer minha companhia também.

- Então tá! – vai lá, continua ae com seu skate. Ele tá puto comigo desde que eu peguei uma mina que ele ficava. Porra, tem mais de um ano isso, esse miserável que vá a merda. E eu nem sabia que ele ficava com ela.

Parece que eu vou sozinho mesmo, não consegui nenhuma perdida e o Felipe deve tá no próximo ônibus. Caralho, ficar sem mulher é muito ruim, mas deve ter alguma lá. Se não tiver nenhuma, é só eu ficar bêbado e na brisa que tá resolvido o problema. Olha lá o Felipe, sabia que ele tava chegando. “Vamos ae Rato?”. Como assim vamos ae, claro que vamos, eu tô te esperando tem muito tempo já, Zé Mané. Tá bem tarde da noite, e esse ônibus cheio, sempre tá assim, mas é porque tem o pessoal que mora na favela e tava trabalhando. Aliás, nem falei que a casa da Cátia é na favela. Mas eu tenho salvo-conduto em qualquer favela, sou mais conhecido que moeda de dez centavos.

7/23/2009

Bueiro

trechos do livro Bueiro

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Acho que já dá pra pagar o Jorge e comprar mais umas fichas. Já fiz até conta de quanto eu tiro por mês e fiz uma projeção pra ampliar os lucros. Todo mundo fala que eu sou muito inteligente, vai ver é por isso que desperdiço essa inteligência. O quê vem fácil, vai fácil. No caso, já que sou inteligente mesmo, não preciso me esforçar pra nada. Jogar me dá uma fome, se bem que tem quatro horas que to aqui, vou comprar um hambúrguer. No caminho encontrei mais uns fulanos que também iam pra festa. Parece que vai ser bom, e sempre sobra uma perdida pra mim.

Acho estranho isso, não entendo. Não sou nenhum galã. Na verdade eu sou magrelo pra caramba, uso óculos, cheio de espinhas na cara e uso umas roupas bem largas, mas até ai tudo bem, todo mundo usa igual, mas pego mulher pra caramba. Quando eu conto ninguém acredita, mas pego muita mesmo, e geralmente arrasto na primeira noite. Vai ver é por que gosto muito e isso atrai. E nada de garotinha, muito raro eu pegar uma mina com menos de vinte anos. Acho que elas ficam encantadas com o garotinho com cara de santo. Tadinhas.

Peço uma coxinha e uma Coca, comida nada saudável, mas fazer o que, coxinha é minha comida porcaria preferida. Ainda falta mais de uma hora pra ir pra festa, se pá vou fazer hora no flipper, ficar sacaneando a galera até ir pra festa. Acho que vou com o Felipe, o maluco é muito ponta-firme. Ele falou que ia demorar mais umas duas horas pra chegar no Terminal, mas eu espero, de repente ainda acho uma mina stylera pra ir com a gente. Encho de pimenta na coxinha e vou comendo amarradão, olhando o movimento. Tem um casal que tá brigando, eles tão bem perto de mim, acho que a mina pegou o cara com outra e armou barraco, depois saiu e ele veio atrás. Agora tá com cara de cachorro sem dono, pedindo desculpas pra ela, que tá bem irritada. Depois de cinco minutos vendo a briga, tomei até um susto quando ela cruzou os braços, calmamente, ajeitou a bolsa, olhou bem pra cara dele, e de repente, como se fosse uma coisa treinada várias vezes de tão perfeito que ficou, ela enfiou a mão na cara dele, bem no meio da fuça. O babaca ainda ficou olhando por uns trinta segundos, estático. Ela xingou ele e saiu fora. Cansei de olhar a galera depois que ela foi embora, vou sentar um pouco lá no Terminal, daqui a pouco chega alguém.

7/22/2009

Bueiro

trechos do livro Bueiro

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Estou jogando péssimo hoje, mas minha cara ainda tá dormente e eu nem comi nada. A grana que eu peguei em casa vai servir pra eu comprar um pacote de Negresco e um refri. Pelo menos não to igual meu primo, que já perdeu dois dentes por que gosta de mastigar o saquinho. Isso é uma merda, a gente cheira, se acha o dono do mundo, depois fica ai, todo se lamentando da vida, daí, pra esquecer, vai e cheira outra vez. Eu só cheiro umas duas vezes por semana, no máximo três. Até porque eu nem tenho dinheiro pra ficar gastando de bobeira.

Chegou o Piolho, da última vez que eu tive que tomar glicose ele que foi comigo, gente-fina toda vida esse moleque. “Ae Rato, vamô lá numa festa mais tarde, na casa da Cátia?”. Claro que vou, maconha e cerveja na faixa, com certeza. Tá na hora de faturar, sempre no mesmo ponto de ônibus: “Moço, perdi meu dinheiro e tenho que ir pra casa, será que o senhor pode me dar o dinheiro da passagem?”. Quando eu pego dinheiro, eu entro em qualquer busão, passo por baixo da roleta e desço lá em cima. Às vezes pergunto se passa em um lugar que não tem nada a ver com o caminho dele e digo que peguei errado, pra descer no próximo. Com essa cara de garotinho da mamãe é ruim de acharem que eu to mentindo. Só tenho pena de pedir pra mulher e pra tiazinha, mas quando aperta, não quero nem saber, peço pra qualquer um.

7/21/2009

Bueiro

trechos do livro Bueiro

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Eu sempre tenho um livro na mão, me amarro em ler. Queria que todo mundo lesse. Chato pra caralho andar de ônibus sem ler. Leva só meia hora pra chegar, mas já dá pra ler umas vinte páginas. Tô lendo Entrevista com o Vampiro, que a coroa que eu to pegando me emprestou. Porra, a mulher tem 38 anos, vinte e três a mais que eu, e é a dona da ótica onde eu fiz meus óculos. Eles me dão uma cara de intelectual, perfeita pra enganar na hora de pedir dinheiro no ponto de ônibus. Vou lá no flipper, só pra variar. Sou um dos melhores jogadores.

“Oh o Rato ai! Firmeza Rato?”. O Jorge é muito figura. “Se liga Rato, tô comendo agora!”. Sempre a mesma parada quando chega alguém diferente aqui. Comprei cinco fichas mas nem paguei, só pago depois, no fim do dia, com a féria. Tem uns cinco ou seis caras jogando e tenho que esperar. Fora o cara que o Jorge disse que tava comendo, o resto é tudo igual. Tudo filho-da-puta e vagabundo. Metade trabalha, metade estuda e a outra metade é casada. Mas a gente se trata de filho-da-puta e vagabundo. Esse cara novo tem um sotaque esquisito, deve ser de outro lugar. Como ele é novo, ele fica quieto, mas faz cara de mau, sempre assim. Daqui a pouco é um vagabundo filho-da-puta.

7/19/2009

Bueiro

trechos do livro Bueiro

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Quando bati a porta elas me ouviram e começaram a gritar. Quem leu 1984? É a mesma parada, em um minuto elas são inimigas, no outro elas sempre foram amigas e eu sou o inimigo conspirador, que criou a desavença entre elas. Odeio esse lugar. Sei lá véio, nunca gosto do lugar onde eu moro. Lá no Terminal tenho muito conceito, aqui eu sou um Prego. É até melhor assim, pelo menos não chamo atenção de nenhum otário. Nem dá pra ouvir elas mais, mas isso me irrita. Quando chegar no Terminal já nem tenho nome, sou o Rato Branco, que é quem eu sou mesmo.

Todo cobrador já me conhece, mas eles nem criam caso, sou bem tranqüilo, vou quieto lá no fundo, nunca arrumo problema nesses ônibus daqui. Mas vez por outra, em linhas de outras áreas o bicho pega. Igual quando eu tava com o Tiago e o Vinicius. Os dois crente que não ia rolar passar por baixo e eu falando que ia. Na hora que o cobrador falou que não, que não tinha desculpa pra dar na empresa eu mandei ele contar que a gente ia espancar ele se ele não deixasse. Foi tipo “abre-te Sésamo”.

Bueiro

trechos do livro Bueiro

2281822033_e0c0796bf6Merda, o lado esquerdo da minha cara está adormecido outra vez. É a segunda vez que isso acontece essa semana, será que devo me preocupar? Do meu quarto eu ouço os gritos na cozinha, dois andares lá embaixo. Não deve ter coisa pior do que duas mulheres histéricas se engalfinhando. Tá ai uma palavra engraçada, engalfinhar. Fora minha avó e em livros da escola, nunca ouvi ninguém falar isso. Não sei onde coloquei meus tênis. Na verdade nem sei como cheguei em casa. Meu quarto tá uma bagunça, mas pelo menos eu estou sozinho, não tem nenhuma garota desconhecida comigo. Duas horas, meio tarde pra levantar, mas mesmo assim não interam oito horas de sono que uma vida regrada teve ter, como fala minha mãe. Regrada, ela deve ter visto esta palavra na televisão e começou a repetir. Não que ela fosse burra, nem nada disso, mas é que é uma droga de uma palavra que ninguém fala na vida real.

Calcei meus tênis e coloquei uma camiseta, já que dormi com a mesma calça suja que tô usando tem duas semanas. Vou descer a escada na esperança de não ser visto, mas deve ser fácil, já que as duas ainda estão trocando carícias uma na cara da outra. Todo dia é a mesma merda, as duas brigando sem motivo nenhum, cinco minutos depois tão rindo, como se nada estivesse acontecido. Chego no segundo andar sem grandes novidades, ninguém me ouviu ainda, vou esperar pra ter certeza. Enquanto espero, será que consigo achar algum dinheiro largado por ai, pelo menos pra pegar o ônibus? Se bem que eu já sei qual vai ser o destino da grana, já que vai ser bem ruim de pagar busão. Por baixo da roleta, ai vou eu!